O DIREITO AO USO DO NOME SOCIAL

“O RECONHECIMENTO DA DIGNIDADE INERENTE A TODOS OS MEMBROS DA FAMÍLIA HUMANA E DE SEUS DIREITOS IGUAIS E INALIENÁVEIS É O FUNDAMENTO DA LIBERDADE, JUSTIÇA E DA PAZ NO MUNDO”. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948)


Nos últimos tempos muito se tem ouvido falar sobre a polêmica questão do direito ao uso do nome social. Façamos então uma pequena explanação sobre o que vem a ser o nome social, diferenciando-o do nome civil e identificando qual a influência de ambos sobre a observância e efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.


Nome Civil


Trata-se de um substantivo usado para designar ou denominar algo ou alguém. É uma palavra capaz de individualizar uma pessoa, expressão pela qual ela passa a ser conhecida e reconhecida no meio em que vive.


O Código Civil Brasileiro, em seu Artigo 16, traz que “Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”.


O sobrenome, por sua vez, é o nome de família, utilizado para identificar a filiação do indivíduo, sua origem familiar, o qual é transmitido hereditariamente. Já o prenome, mais conhecido como “nome de batismo”, é individual, de livre escolha dos pais, respeitando, é claro, as limitações impostas aos nomes que possam conduzir o nomeado a situações vexatórias ou de constrangimento.


O nome é um atributo da personalidade da pessoa humana, direito à integridade moral e pessoal assegurado constitucionalmente. A proteção concedida ao nome visa tutelar o direito à identidade pessoal, ou seja, toda pessoa que nasce com vida tem direito a um nome.


Há dois aspectos relevantes relacionados ao direito ao nome: o aspecto individualizador, no sentido de distinguir os indivíduos que compõe a sociedade, e o aspecto identificador, na medida que o indivíduo precisa ser familiar, juridicamente e socialmente identificado para os fins objetivados pelo Estado (civil, administrativa e criminalmente).


Através do registro civil de nascimento, direito fundamental de todos, a pessoa passa a gozar da capacidade de pleno exercício da cidadania. Ao oficializar-se o nome civil, tem-se a inclusão formal do indivíduo na sociedade.


Por essas razões o nome constitui mais que a simples designação de uma pessoa. O nome detém elementos que carregam desde a história de vida da pessoa e sua família, até a sua identificação e individualização na sociedade.


Fábio Ulhoa Coelho, em sua obra, descreve que o nome “é a identificação da pessoa natural. É o principal elemento de individuação de homens e mulheres. Tem importância não apenas jurídica, mas principalmente psicológica: é a base para a construção da personalidade”.


E é exatamente embasada no aspecto psicológico presente no nome que construiu-se a tese do direito ao uso do nome social. Justamente porque, assim como pode ser considerada uma informação positiva, o nome também pode se apresentar como uma manifestação vexatória para o indivíduo, seja por se tratar de nome ridicularizante, seja por ele se apresentar de forma divergente em relação à pessoa que o detém.


Especificamente nos casos nos quais ocorre tal divergência, entre o nome constante no registro civil e o sexo morfológico da pessoa, o nome civil manifesta o viés negativo de colocar alguém em situação constrangedora perante a sociedade, em razão do gênero o qual se identifica ser antagônico ao gênero a que se refere o nome presente em seus documentos.


Nesses casos, a veracidade hipoteticamente contida em um registro civil passa a ser questionada quanto ao fato de dever representar a genética ou a personalidade do indivíduo.


A questão básica é que as pessoas devem ser nomeadas e reconhecidas pelo modo como elas se identificam para o outro, e consequentemente, respeitadas como tal.


Nome Social


A problemática do uso do nome social vem a tona por tratar-se de um nome diverso do que consta no registro de nascimento original. Tem-se, então, a premente necessidade de superação dos obstáculos meramente morais que impedem as mudanças necessárias na legislação específica brasileira, a exemplo de outros países, como tarefa primordial para a concretização do princípio da igualdade e para o resgate do direito à identidade pessoal e da dignidade humana no Estado Democrático de Direito.


A busca pelo reconhecimento do nome social tornou-se uma bandeira do movimento LGBTT. No entanto, nota-se que também diferentes classes de pessoas recorrem a esse direito. Inserida nesse contexto também encontra-se a classe artística, na medida em que o nome artístico, pelo qual a pessoa é socialmente conhecida, nem sempre corresponde ao nome que consta nos documentos oficiais.


Os grupos LGBTT (sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) são a principal questão a ser abordada quando tratamos do direito ao uso do nome social, posto que sempre foram marginalizados em razão da intolerância e comportamentos preconceituosos. Especialmente quanto às pessoas travestis e transexuais, que detém um histórico de humilhação por sua condição comportamental, por sua identidade de gênero ou por sua orientação sexual. O uso do nome social por travestis e transexuais interfere diretamente nas relações desses grupos vulneráveis no meio social ao qual pertencem.


Cabe então diferenciar os conceitos de identidade de gênero e orientação sexual pois, definitivamente, não é o órgão sexual que define nosso gênero, que é simplesmente uma construção social e cultural.


A orientação sexual está relacionada com a forma como o indivíduo expressa sua afetividade ou sua sexualidade, relacionando-se com pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto, sendo assim considerado gay, lésbica, bissexual ou heterossexual.


Já a identidade de gênero, é entendida como a expressão, pelo indivíduo, de sua personalidade e suas características de acordo com o gênero diferente do sexo com o qual nasceu. Dessa forma, não se pode confundir identidade de gênero com orientação sexual, de maneira que o indivíduo pode expressar sua real identidade de gênero sem necessariamente ser considerado gay, lésbica ou bissexual, pois ambas expressões da personalidade não possuem correlação lógica.


Nasce então a questão do nome social, que é a designação que o indivíduo, de acordo com suas experiências, suas preferências e suas orientações, escolheu para lhe representar diante dos demais, por entender que o nome assentado em seus registros oficiais não condiz com sua personalidade, com sua identidade de gênero.


O uso do nome social busca, portanto, evitar situações de humilhação e de discriminação, numa tentativa de duplo efeito: promoção da auto aceitação, e da aceitação da sociedade.


As situações vexatórias, violentas e opressoras contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, todas relacionadas à não aceitação dessas pessoas pelos demais por não se enquadrarem nos padrões socialmente toleráveis, são os principais fatores que colaboram, por exemplo, com a evasão escolar em todos os níveis de ensino por parte destes indivíduos que, desde muito cedo, são submetidos às mais diversas práticas de intolerância, dificultando ou até mesmo impedindo sua convivência em diversos espaços, especialmente o educacional.


A consequência nefasta é que, sem estudos, sem qualificação profissional, muitas vezes expulsos de seus próprios lares, restam-lhes pouquíssimas opções de sobrevivência e, frequentemente, devido a um mercado de trabalho preconceituoso, sequer conseguem oportunidades de emprego. Poucas opções lícitas ou moralmente aceitas pela sociedade restam à sua disposição.


A fim de prevenir esse tipo de submissão a humilhações, tem-se o recurso da previsão legal do direito ao uso do nome social.


Assim como o nome civil, o nome social também é uma necessidade de sujeitos de direitos, mas, ao contrário do primeiro, o nome social provém de escolha do próprio usuário, de acordo com sua subjetividade, especialmente por lhe representar melhor.


Temos então que, a tutela jurídica do nome social, enquanto mecanismo de redução dos danos relacionados às incompatibilidades entre as características biológicas e as comportamentais de uma pessoa, representa uma medida fundamental para a redução de práticas discriminatórias, promovendo a isonomia e adequação do individuo ao meio social.


Eventuais políticas públicas com a finalidade de desestimular atos homofóbicos e violentos, campanhas publicitárias e demais atos do poder público ou da iniciativa privada em favor dessas minorias são insuficientes se não forem acompanhados do reconhecimento do direito ao uso do nome social enquanto medida hábil de proteção à dignidade da pessoa humana, por tratar-se de princípio fundamental da República Federativa do Brasil.
E são exatamente estes os elementos que amparam o direito ao uso do nome social: proteção da dignidade humana, dos direitos da personalidade, da honra, da integridade moral, da igualdade, da liberdade, da privacidade, vedação de práticas lesivas degradantes e de discriminação odiosa, todos fundamentados no texto constitucional.


Considerações Finais


Consideramos que a temática da diversidade sexual é uma das feições mais complexas e de difícil tratamento por parte da sociedade humana.
Um Estado democrático e justo deve ter como principio básico a tolerância, atentar para a multiplicidade de vontades e respeitar as diferenças.
A Constituição Federal brasileira trouxe o princípio da dignidade do ser humano enquanto tal e o respeito às diferenças em consonância com a ordem social. Nesse contexto, a adequação do nome de travestis, transexuais e transgêneros aponta para um sistema de integração e coerência com a Lei Maior, na medida em que atenta aos preceitos dos Direitos Humanos e do Direito Internacional.


Eis o porquê de o uso do nome social pelos transexuais como meio de adequação de sua identidade pessoal a sua identidade de gênero, ambos atributos dos direitos da personalidade, ser uma questão tão relevante ao exercício da cidadania.


Partindo-se do pressuposto fundamental de que o Direito é dinâmico e tem por vocação regular as relações sociais, deve ser considerada a opção sexual de qualquer pessoa, para fins de utilização de nome social e seus consequentes reflexos. Ressaltando que a individualidade se estabelece na vida através do nome.


A simples alteração do prenome, englobado no nome, viabiliza-se perfeitamente posto que o nome social consiste no apelido publico e notório pelo qual um transexual, um travesti ou um transgênero, são identificados em seu meio familiar e social de acordo com a sua identidade de gênero, independente de seus documentos oficiais.


Urge uma ampla mobilização no sentido inverso das práticas de exclusão e que sensibilize profundamente a sociedade, para que a discriminação contra as minorias seja extirpada do cenário social.


Atualmente vários órgãos e instituições públicas e particulares reconhecem o direito ao tratamento pelo nome social, bastando que a pessoa, ao apresentar a sua identidade civil, registre, igualmente, o nome pelo qual deseja ser chamada.


Em decorrência da prática de politicas publicas de inclusão social e de acesso à cidadania por travestis e transexuais, já temos, inclusive, extensa legislação municipal, estadual e federal tratando do assunto, reconhecendo o direito ao uso formal do nome social, levando em consideração a urgência e relevância do tema.


No mês de maio de 2016, a Ordem dos Advogados do Brasil, em uma iniciativa pioneira da Comissão da Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da Secional paulista, aprovou o uso do nome social no registro da Ordem por advogados e advogadas travestis e transexuais, através de uma determinação que prevê que o nome social seja incluído ao lado do nome de certidão na carteira profissional e nas identificações online, no âmbito dos sistemas da OAB em todo o Brasil.


Todas essas intervenções representam um investimento na construção da cidadania dessas minorias e na árdua luta contra a homofobia, considerada um grave problema social.


O reconhecimento oficial do nome social torna-se apenas mais um passo nesse sentido; um passo importante no sentido de romper as barreiras do preconceito em um mundo em que a sociedade estabelece o que não lhe corresponde ao “normal”.


A luta em defesa da positivação do nome social é coletiva e mundial, mostrando ser perfeitamente possível nadar contra a corrente na luta por um novo mundo, construído nos alicerces da igualdade de gênero e do combate às mais diversas formas de preconceitos, discriminação e violência.


O uso do nome social não constitui tão somente a adoção de um nome não formalizado pela norma jurídica. Ele vem ao encontro da aceitação de indivíduos que até então se encontravam marginalizados, execrados pela sociedade. Os mesmos que a partir do exercício de um direito, passam a gozar da possibilidade de substituir os perigos de uma vida noturna, violenta, nas ruas e esquinas, pela crescente aceitação de uma sociedade, que passa a reconhecê-los na amplitude do conceito de “pessoa”, portanto, sujeitos de direitos.


Por Fabiana Villela de A. Magalhães Pinto 

 

Todos os direitos reservados © 2024 FABIANA VILLELA MAGALHÃES ADVOGADOS