Por entender que não há urgência para a Marinha reformar compulsoriamente uma mulher transexual e deixar de tratá-la por seu nome social, o desembargador Marcelo Pereira da Silva, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES), negou efeito suspensivo a agravo de instrumento da União. O recurso questiona tutela de urgência que impediu que a militar fosse retirada da ativa e exigiu que ela fosse tratada pelo gênero que escolheu.
Há mais de 20 anos na Marinha, a segundo-sargento foi afastada do serviço em 2014 por incapacidade temporária após ter sido diagnosticada com “transexualismo e dislipidemia mista (altos níveis de colesterol e triglicéridos no sangue)”. Em 2017, após laudo de incapacidade definitiva, a Marinha iniciou um processo de reforma compulsória da mulher trans.
Ela então foi à Justiça. Alegou que está em perfeitas condições de saúde e que a Marinha lhe negava o registro de seu nome social na carteira de identidade funcional e nos assentamentos. Assim, pediu que a Marinha seja impedida de continuar seu processo de reforma e que respeite seu nome social nos assentamentos militares e no tratamento pessoal.
Em defesa da Marinha, a Advocacia-Geral da União argumentou que a militar não poderia ser transferida. Isso porque a medida só é permitida entre oficiais, e segundo-sargente não é um cargo desse nível. Além disso, os procuradores federais sustentaram que a mulher trans entrou na Marinha em um posto que só admitia vagas masculinas. Sem autorização legal para transferi-la, isso violaria o princípio da legalidade, disse a AGU.
A 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro concedeu tutela de urgência ordenando que a Marinha paralise a aposentadoria da militar e mude a forma de tratamento dela. Em sua decisão, o juiz apontou que a autora foi afastada de suas atividades diversas vezes por ser transexual, uma vez que uma das terapias recomendadas para isso é se vestir e portar de acordo com o gênero desejado — o feminino. E isso, para a Marinha, conflitaria com a atividade militar.
Porém, o julgador destacou que “não se verificou em nenhum momento redução da capacidade cognitiva ou física da parte autora em razão da busca de sua identidade de gênero”. Pelo contrário: médicos relataram que a ansiedade e a depressão da segundo-sargento diminuíram depois que ela se assumiu como mulher.
“Portanto, a transexualidade não determina, por si só, a incapacidade laborativa, nem incompatibilidade funcional com sua condição de militar da ativa da Marinha do Brasil. Veja-se que a manifestação da AGU nem sequer faz referência ao laudo médico, limitando-se a defender a tese segundo a qual não seria possível a transposição do quadro masculino para o feminino”, ressaltou o juiz federal.
A seu ver, aceitar a tese da União de que é proibida a transferência do quadro masculino para o feminino “equivaleria a dizer que transexuais não podem ser admitidos no serviço militar”. E isso, de acordo com ele, violaria “frontalmente” o artigo 3º, IV, da Constituição. O dispositivo prevê como objetivo fundamental do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
A AGU recorreu da decisão, pedindo a atribuição de efeito suspensivo ao agravo de instrumento, mas o desembargador federal Marcelo Pereira da Silva negou o requerimento.
Em sua opinião, a Advocacia-Geral não demonstrou o perigo da demora na suspensão do processo de reforma da militar e na retificação de seus documentos — o que foi efetivamente determinado pela tutela de urgência.
Por Sérgio Rodas
Fonte: Revista Consultor jurídico
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Processo 0000511-73.2018.4.02.0000